Sexta-feira passada, dia 06/12/2013, acordei às 06h00 da manhã depois
de ter sonhado com meu pai.
Fiz o café, levei na cama para a Daya e comentei o sonho
estranho, mas era apenas um sonho.
Me arrumei para ir trabalhar, liguei o computador para
pegar alguns dados antes de sair e como de costume meu celular tocou, era um
amigo pedindo minha ajuda para uma pessoa que necessita de medicação para uma
criança prematura, uma medicação que custa R$ 6.990,00 e a família sendo pobre
não têm condições financeiras para adquirir.
Às 8:45 recebi uma
mensagem no celular, era da minha irmã, antes mesmo de abrir olhei para a Daya
e disse “Acho que o meu pai morreu.” A
mensagem dizia “Cecilia não sei se vocês querem falar tchau pro papai, mas ele
faleceu e eu estou velando ele.”
Foi uma sensação estranha, uma confusão na minha mente, a
dúvida se iria ou não. Me censurei por não ter sentimento naquele momento. Localizei
meu outro irmão, conversamos e decidi ir, logo em seguida liguei para minha
irmã, peguei o endereço e fui.
Cheguei no local e vi minha irmã que há anos não via. Vi tias,
tio, primos que há 40 anos não os via, tantos anos se passaram que muitos deles
eu já não lembrava os rostos.
Minha irmã assim que me viu se emocionou e me abraçou
chorando, meus olhos se encheram de lágrimas...
Olhei tudo a minha volta, vi que tenho sobrinhos lindos,
mas não conseguia chorar.
Fiquei olhando sem saber o que fazer e um vazio tomou
conta da minha mente quando vi o corpo no caixão. Era um conhecido, mas um estranho, pois ele
não me conhecia e nem me deu o direito de conhecê-lo e de amá-lo, não foi um pai
para mim.
Lembrei das vezes que tentei me aproximar e a rejeição
vinha acompanhada de várias palavras irônicas e cruéis, onde a indiferença e a repulsa
aos meus sentimentos eram grandes.
Como eu poderia naquela hora esquecer tudo que passei se ainda
tem noites que acordo escutando os gritos dos pacientes psiquiátricos tomando choques?
Eu não era e não sou doente, apenas amo diferente do “padrão”
que foi imposto.
Como esquecer das ruas, do que vivi, do frio, da fome e
de tudo que passei?
Meus sentimentos se confundiram como se o tempo retrocedesse...
Como se um filme andasse em câmera lenta, cheio de lutas e feridas que eu
procuro ainda nos dias de hoje com esperança cicatrizá-las com o tempo.
No momento da despedida no crematório, minha irmã
escolheu as músicas e escutei sua fala sofrida, como a minha, mas contente de
ver que pelo menos naquele momento parecíamos uma família.
Chorei ao lembrar a infância, de uma das surras que me
tirou um pouco da audição, das vergonhas que passei quando naquela época ele me
chamava na frente de todos meus amiguinhos, parentes e vizinhos de “mulher
macho”, ”vagabunda” entre outras ofensas e humilhações que não convém citar.
Agradeci minha irmã e pedi que daquele momento em diante tentássemos
ser uma família aquela que nunca fomos, não precisa ser a da margarina, mas aquela
que sonhávamos quando éramos criança, pois o final de todos seria o mesmo e
depois, depois não me recordo mais o que falei...
E mais uma vez vou repetir aqui aos pais que não
abandonem seus filhos por suas vidas e não façam escolhas pelos filhos, a
felicidade e a busca dela só cabem a eles próprios e não permitam que a
sexualidade os separe de seus filhos, pois eles não deixarão de serem filhos,
irmãos, sobrinhos, primos por amarem alguém do mesmo sexo. O amor não é diferente,
porque amor é sempre amor.
Todos nós somos dignos de sermos felizes, somos capazes
de amar e não raras vezes de passar por cima de tudo por amor.
A vida é uma conseqüência de nossas atitudes e não nos
tornamos melhores depois que morremos.
Particularmente acredito que só passamos aqui para ‘resgatar’
algo, um carma talvez... E talvez o meu seja aprender cada vez mais a me
valorizar, pois graças a Deus nunca tive vergonha de quem eu sou.
Hoje faço da minha história de vida, da minha luta, minha
bandeira e quando o meu braço se cansa levanto ela com mais vontade, pois as lágrimas
que eu chorei e as que choro hoje não desejo que outros chorem, pois estas são
as lágrimas derrubadas pelo sofrimento causado pelo preconceito, discriminação e falta de
compreensão de uma família.
Vou seguir assim, lutando como sempre o fiz, pelos LGBTT,
pelos cadeirantes, surdos, cegos e muitos outros que são invisíveis para a
sociedade, pois quando morei nas ruas tive ajuda de várias pessoas que nunca
tinham me visto, mas me estenderam a mão e carinhosamente me chamavam de moleque
– eu gostava do moleque.
Sei que atualmente a liberdade de lutarmos está maior, assim
como a demagogia de muitas autoridades que se dizem defensores e simpatizantes
da causa LGBTT , deficientes e pela saúde, só não entendo como a bancada
evangélica consegue tanto regresso se temos tantos “defensores” e “simpatizantes",
os deficientes continuam sendo tão ignorados nos seus direitos básicos e saúde cada
vez mais defasada. É muita autoridade que não vê, não ouve e mais ainda os que
não sabem de nada, mas que aprovam e compactuam com projetos absurdos na “calada
da noite”.
Sobrevivi arrancando de tudo o lado bom e aprendi nas
ruas que ajudar uns aos outros é realmente o significado de uma realização
moral e social humana. Aprendi a correr atrás dos meus sonhos mesmo quando um
tolo de espírito me diz que além de pobre sou LGBTT e não posso ter sonhos
altos, porque essa criatura diz que LGBTT não é ninguém, mas eu não me abalo
com pouca coisa e gente pouca, pois minha força sempre veio de dentro de mim, das
ruas, das calçadas que dormi, da fome que senti, das surras que levei, das
noites no juizado de menores...
A minha mulher que em todos os momentos está do meu lado,
obrigada amor por segurar minha mão e me amar, o que está escrito o homem pode
até fingir que não vê, mas a história pertence a Deus e o nosso amor está
escrito.
Durante esses dias tenho me lembrado de uma surra que
levei do meu pai quando tinha 10 anos, que chorando olhei para ele e disse que
quando ele morresse ele iria olhar do lado e eu estaria carregando a alça do
caixão dele e o sentimento por ele seria de pena, não amor, porque ele não me
deixava amá-lo. Ele me olhou dizendo que não queria uma ‘mulher macho’
carregando a alça do caixão dele.
Sinto muito pai, eu carreguei. E em cada passo que eu
dava eu pedia para Deus ter a misericórdia de ampará-lo e lhe dar a compreensão
de uma vida que não quis ter ao meu lado.
Espero pai, que o senhor encontre o descanso e a compreensão
que não teve em vida.
Bem, chorei por você pai, mas pelo pai que o senhor não
foi.
"Para quem tem Fé, a vida nunca tem fim..."